segunda-feira, 16 de julho de 2012

Velório

O violão ainda toca as mesmas notas que saíam naquela noite em que acendemos as velas pela última vez. É verdade que depois dele, ninguém nunca ousou apertar as cordas ou mesmo tentar empunhá-lo. Pouca coisa mudou desde que ele partiu, pouca coisa mudou desde que ele resolveu que todos nós seríamos seu último paradeiro. Não tenho certeza se ele realmente partiu para sempre ou se alguma dia desses vamos vê-lo nos jornais, como se fosse um daqueles milagres que só acontecem quando estamos longe. Não tenho certeza de mais nada, pois a única certeza que eu tinha partiu junto com meu par de óculos e aquelas botas. Bons tempos em que elas trilhavam o caminho de casa, mas agora só trilham caminhos que ninguém consegue ver... Ou então não estão trilhando caminho nenhum, o que faria com que todas as minhas crenças fossem enterradas junto com ele.

Lápides não são o melhor lugar do mundo para se lembrar de alguém, pelo simples fato de que elas nos fazem esquecer de tudo o que existe de ruim na Terra. Se você quer que as pessoas falem bem de você, peça para que elas vão dar o testemunho em cima de seu cadáver, d'outra forma você será escurraçado pelas palavras de quem provavelmente finge que te ama. Mas com ele era diferente... Nunca houve qualquer fingimento ou qualquer outra forma de falsidade ou pudor moral. Os cigarros não precisavam ser disfarçados, os vinhos não precisavam custar mais do que alguns trocados e a música não precisava parecer culta, pois ele sempre foi cru como nós gostávamos que as pessoas fossem. Nós somos crus, na verdade eu penso que todos são, mas nem todos conseguem admitir que não quiseram ser polidos pelo tempo. Éramos apenas alguns amigos antes que ele chegasse e nos tornamos o inferno doce quando ele partiu. Lágrimas não vieram no primeiro adeus, mas a fumaça da sinceridade alcoólica sempre faz os olhos ficarem marejados. É verdade que a vermelhidão os esconde, mas ainda assim podemos sentir o que está por trás dos tremores dos lábios.

Ele partiu e não nos disse adeus. Não revelou se voltaria, apenas se foi sem avisar. Não consigo entender qual a razão para a partida, pois todos nós o tratávamos como parte da família ou às vezes muito mais do que isso. Nós realmente gostávamos dele por perto e isso não acontecia por nenhuma obrigação. Se eu for bem sincero, a única obrigação que tínhamos nessa história era a de lutarmos para que ele continuasse por aqui. Afinal de contas, era ele que nos fazia esquecer que havia dor do lado de fora e - principalmente - que havia algo além daquela felicidade, que mesmo sendo pouca, ainda nos deixava continuar.

Não gosto de lembrar do dia em que, pela primeira vez, não o encontramos assim que chegamos em casa. A culpa corroía todos os rostos envolvidos e era mais fácil gritar que não havia o que ser feito do que realmente buscar alguma solução. Você estava escondido no meio dos nossos sonhos e, sem saber, estava fazendo com que os pesadelos viessem até nós. O que seria de nós sem você? Você nunca parou para pensar que estava fazendo parte das nossas vidas e que ir embora significaria o fim de tudo o que eu acredito? Onde você se meteu naquele dia? Depois daquilo começou a ser constante a sensação de que você estava pronto para ir embora e nunca mais voltar. Como a gente costumava dizer, você era o curativo sendo arrancado devagar, sem qualquer pressa de nos deixar, mas já sem a cola que faria você ficar pra sempre. E doía perceber que a cada milímetro arrancado, aquele curativo começava a se tornar uma distância que jamais poderia ser revertida. A sensação de que você estava indo embora não ajudou meu coração a se acalmar e a cada abraço a dor aumentava. A sensação de que você estava prestes a partir vinha junto com a sensação de que aquele seria o "último abraço". Depois daquilo também veio o "último beijo" e a dor que rasgava as almas enquanto você nos separava não foi nada agradável. Uma porta se fechando, um elevador que demora anos para descer poucos andares e um portão batido com a palavra "eternidade" sendo enterrada. Essa não foi enterrada contigo, porque você fez questão de nos mostrar que não poderia estar perto de qualquer palavra que mostrasse um futuro. E "ele" se torna "você".

Já faz quase um ano que você se foi e ainda assim o violão toca aquela música que nos fazia parecer algo de verdade. Não entende porque nenhum de nós jamais conseguiu tocar aquela música do jeito certo, mas você fazia ela parecer perfeita. Já faz quase um ano que você se foi e eu ainda sinto sua falta a cada dia. É difícil quando você percebe que já não sabe qual é a semana certa, porque perdeu as contas de quantas garrafas foram derrubadas no caminho daquela casa até a sua lápide. Já faz quase um ano que eu sinto a sua falta. Mas o que mais me dói é saber que mesmo que algumas coisas voltem a ser como eram antes, sem você por perto nós seremos apenas dois.
É horrível admitir, Amor... mas você morreu!

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